![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiCY9qGXXREIzikMOiDHNQ9Hl2XLvC_ztklt_nO86rmQ4txqnbzoeBxgRUmVOG5IFY-Y_B2_k_WWv4eziXZbWSz2wbDl_iuLGn8X3RjVMjkzvi2PiAazxVpgfh6sePL1jZF81B9yG6NM81O/s400/untitled+a.bmp)
Livre, sua simpatia era objeto de disputa. Cotó era personagem das nossas férias, dos nossos fins de semana, de muitos dos nossos momentos de alegria. No sábado, saiu para não voltar. Não dava mais pra ele. Os rins tinham parado de funcionar. Já não conseguia mais se alimentar. Só lhe restava a dor. Dor silenciosa, respiração ofegante, cansaço extremo. Foi levado ao veterinário. Um primeiro remédio o fez dormir, e outro pôs o ponto final.
Os dias podiam ser instáveis; o céu, temperamental; o sol, incerto; a temperatura, variável. Mas Cotó restituía todas as nossas esperanças de dias melhores. Era o portador da memória daquele lugar. Mais do que qualquer um de nós, sabia que um vento podia enegrecer o céu ou, então, abri-lo num azul largo e ancestral.
É provável que voltasse sempre em busca de comida — não aceitava nada que não fosse carne ou derivado, o luxento! —, e a gente confundisse aquilo com afeto. Mas quem se importa? Quem é tão vaidoso a ponto de inquirir os reais sentimentos de um cachorro?
Às vezes ele interrompia a minha leitura ou outra coisa qualquer que estivesse fazendo. Postava-se à minha frente. Encarávamo-nos, então, com camaradagem. “E aí, meu? O que é que manda?” Ele se aboletava por ali, descansava o focinho entre as patas, fechava os olhos devagar e parecia me dizer: “Isso vai se repetir para sempre. A vida pode ser assim, mansa…” E, por alguns segundos, minutos talvez, eu conseguia não pensar em nada, não querer nada, não me importar com nada. Dois camaradas satisfeitos, silenciosos, ocos de anseios, como a paisagem, como a seqüência dos dias, como o marulho mais ao fundo.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjNBqWx5txIrSLvcMtXtnTEdUGCbpCA6vCbV5KtWMrQIf7msmexBmsPpLSLZljSGJDSDjBYqf_CoLY4D1RDn6Qsb-V2lbeja38T2YdW1igRb3gBfyErFxWiCGNMtmbOwLLtqvM_ifj6jBtI/s400/untitled.bmp)
Morreu Cotó, e o tempo nos invadiu. Terei de aprender a amar outra narrativa na mesma paisagem, da qual ele não é personagem. Eu devo ter imaginado — acho que sim, não estou bem certo — que me viriam os netos e que ele continuaria por ali a atestar que nem tudo nos foge pelos vãos dos dedos, aos poucos, sem nem mesmo um suspiro audível.
Isso não é política, como vêem. É que Cotó tomou seu rumo. Lá se foi ele, sem consultar ninguém, como sempre, dono do seu nariz.
Reinaldo Azevedo
Comentário:
Reinaldo Azevedo é colunista da revista Veja. Sempre gostei de suas matérias e muitas já postei neste blog. Com a postagem de hoje, confesso que admiro ainda mais este escritor. Ele revelou para muitos um lado pessoal, dividiu com todos um pouco da sua vida e da sua dor pela perda do amigo Cotó.
(Siegmar)